Aranha e o fim da cordialidade

 O goleiro Aranha não quis abraçar e perdoar ao vivo, em rede nacional, a pessoa que o ofendeu.

Sóbrio, disse que a perdoava sim, como bom cristão, mas que preferia que ela se entendesse com a justiça. Que pagasse pelo que fez.

A moça que ofendeu Aranha, de sua parte declarou, em várias entrevistas que gostaria de abraça-lo para mostrar que não é racista.

Emocionada, nos contou sobre sua vida de mulher sozinha, morando com um gato. Sobre seu pai morto e sobre sua mãe, que mora com o namorado. E sobre seu amor incondicional pelo Grêmio.

Ela disse que se arrepende profundamente pelo que fez e que pretende ajudar a combater o racismo daqui em diante.



Não vou entrar no mérito de tudo o que aconteceu, pois como Aranha, prefiro que a Justiça o faça. Vou comentar apenas sobre um aspecto que me parece importante na postura dos dois protagonistas deste lamentável acontecimento.

Aranha fala das leis, de seus direitos e nunca é pessoal. Ele nada disse sobre a sua vida e sobre a vida de sua família. Sobre seus problemas pessoais ou financeiros.

Aranha acredita que teve um direito violado e pretende que as instituições formais tomem alguma providência sobre isso.

A acusada de agredi-lo é pessoal o tempo todo. Fala de si, de sua família, de seus amigos. Parece querer transformar o acontecido, um problema jurídico, de direito, em uma questão estritamente pessoal.

A moça foge da gramática do direito para tentar nos conduzir para a linguagem do amor e do afeto.

O episódio cai como uma luva para ilustrar os dilemas apontados em “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda.

O livro afirma que uma das maiores dificuldades em implementar e manter o estado de direito funcionando é justamente esta recusa a abandonar o registro do afeto e da família em favor da impessoalidade das leis.

Pois para que o direito funcione, ele precisa ser impessoal. Ele deve atingir a todos sem levar em conta todas as mazelas e idiossincrasias de cada um.

O direito tem, de fato, uma frieza bem difícil de se suportar. Ele não é como nossas mães e pais que estão dispostos a nos perdoar, mesmo nossos atos mais abjetos.

As instituições judiciárias nos julgam pelo que fizemos e não pelo que somos.

De nada adianta alegar que uma pessoa não é racista em sua “essência” se ela cometer um ato que seja considerado racista à luz do direito.

Se Aranha perdoasse e abraçasse a moça, estaria ajudando a tirar um pouco da força do estado de direito. Estaria dizendo: a justiça vai fazer seu papel, OK, mas eu sei que é mais importante a gramática do afeto e do amor familiar.

Ele não fez isso. E é interessante refletir sobre os seus porquês.

No espaço da cordialidade, os negros e negras estão desprotegidos. Nesse campo, é esperado deles e delas que tolerem um certo grau de racismo.

Que sejam razoáveis e tranquilos em relação a certas “brincadeiras” e comportamentos. Que não levem tudo “tão a sério”.

Mas a cordialidade brasileira, como sabemos é racista. O sonho hippie de uma sociedade sem direito, em relação ao qual sou altamente simpático, pode descambar aqui para a violência aberta.

E o racismo nas relações sociais não é exclusividade nossa. Europa e Estados Unidos são campeões nesse quesito.

Além disso, nossa cordialidade também é violenta com mulheres, gays, travestis e transsex. Nosso senso comum “afetivo” e “familiar” vê pouco dano em certos comportamentos e brincadeiras “saudáveis” com essas pessoas.

Mas aparentemente, para o bem do estado de direito, parece que elas estão se cansando de serem assim, tão “legais” com todo mundo.

Cansaram da posição de subalternos, pois descobriram que o direito pode nos igualar a todos. Todos temos direitos iguais e devemos lutar por eles.

Graças à gramática do direito, o tempo da cordialidade sem contestação parece estar chegando ao fim.

Por isso Aranha é um marco na esfera pública brasileira. No sentido clássico da palavra, a sua luta pelo direito, como nos ensinou Ihering, ajuda manter o sonho do estado de direito vivo entre nós.

E combater cordialidade é essencial, pois vira e mexe, ela mostra de novo a sua face e nos assedia, interna e externamente, com seus critérios iníquos.


José Rodrigo Rodriguez: Filósofo do direito, poeta, pesquisador e professor (UNISINOS/Cebrap). Seu principal tema é a diversidade humana e seus conflitos. É autor de “Como Decidem as Cortes?” e “Peixe Insolúvel”.

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